segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

a-ver-livros: Pelo olhar de Alexander

Sou de paixões. E no final deste ano enamorei-me intensamente de certo quadro, este primeiro quadro. ‘Visitava-o’ de vez em quando, ficava ali a contemplá-lo e a interrogar-me: será que ela está entediada? Este livro seria uma seca? Perdeu-se apenas na sua própria imaginação?
Munida do nome do autor, esse quadro levou-me a outro. E a outro. E a outro. Quando dei por mim, queria saber mais. Queria saber o que estava do outro lado. Saber mais sobre quem assim pinta gente que lê.


Abençoadas as novas tecnologias que me fizeram ter acesso primeiro ao quadro, depois a Alexander Sokht, 44 anos, pintor russo de Krasnodar, ali à beira do Mar Negro, que a vida e a arte levou primeiro para Moscovo e, mais tarde, para Praga, na República Checa. Já com a mulher, a também pintora Svetlana Kurmaz, abriu por lá uma pequena galeria de arte.
Terá sido, quem sabe, no intervalo entre assuntos burocráticos da galeria e mais umas pinceladas numa nova tela que Alexander decidiu abrir a net – e encontrou a minha mensagem. Quero saber mais, dizia eu, cheia de lata.


As tecnologias não fazem tudo, e o facto de ele pouco mais falar do que russo e eu de russo não saber mais do que meia dúzia de palavras não facilitava. Prometi simplicar o meu inglês ao máximo. Ele prometeu recrutar a ajuda da mulher para tentar responder o melhor possível na língua de Shakespeare. “Obrigado, Ana, pelas interessantes questões que colocas. Para mim será interessante também descobrir as respostas. Vou trabalhar nisso”, diria numa das mensagens. E confirmaria dias depois. “Foi realmente uma experiência interessante. Tenho a certeza de que dei imensos erros no inglês mas confio que entendas o que pretendo dizer.”


O que vos apresento em seguida, com um irreprimível sorriso, é a pequena entrevista que assim se proporcionou. E tudo porque uma paixão pelos livros se reflecte numa paixão pela arte, que se traduziu numa paixão por um quadro, que justificou uma conversa que, lida com atenção, é quase literatura. Eu acho que já vos tinha dito que isto anda tudo ligado.

“AA – No teu portfolio há inúmeras pessoas, principalmente mulheres, a ler. Como é que os livros começaram a aparecer na tua arte?
AS – Quando eu era mais novo tinha imensos livros ao meu redor. Quando cresci conheci a mulher da minha vida. Hoje em dia tenho comigo a mulher da minha vida e alguns livros. Eles reunem-se, de vez em quando, nos meus quadros.

AA – As mulheres que pintas estão entediadas ou apenas a sonhar, a divagar?
AS – Às vezes, quando estão a ler, elas voam do lugar onde estão na realidade… E quando regressam a essa realidade é como se tivessem acabado de acordar, tentam ainda reencontrar-se consigo mesmas. Porque é que pinto principalmente mulheres a ler? Isso é fácil de responder. Porque as mulheres são mais susceptíveis, compassivas, têm mais imaginação e apreciam mais o processo da leitura.

AA – Encontrei apenas um quadro teu com um homem a ler [Alexander enviar-me-ia depois mais dois]. É um auto-retrato? Se sim, porquê com um livro nas mãos e o que estás a ler?
AS – Eu queria responder ‘Simmmmm, sou eu’. Porquê com um livro? Porque com um livro na mão pareço mais inteligente. Mas, na verdade, não é um auto-retrato. Não sou eu que ali estou. É apenas alguém que representa o outro lado do processo da leitura, a leitura não pelo prazer mas pelo conhecimento que proporciona. Precisamente por isso este quadro se chama ‘Non Fiction’.

AA – Fala-me mais da tua relação com os livros. Vê-los como simples objectos que ajudam a compor um quadro?
AS – O livro não é para mim um objecto fetiche. A leitura é mais importante do que o livro. Porque podemos ler imenso nos olhos da pessoa que amamos, no voo dos pássaros, nas vozes dos amigos… Os livros nos meus quadros são apenas simbólicos da nossa capacidade de ler.


AA – Lês muito? O que gostas de ler? Algum autor ou livro preferido?
AS – Hoje em dia prefiro reler alguns livros de tempos a tempos em vez de ler algo novo. Diria que o meu autor preferido é Leon Tolstoi e o livro o “Anna Karenina”.

AA – Pode dizer-se que influenciou muito a tua arte?
AS – Não tenho apenas livros por amigos, tenho alguns verdadeiros. E que me influenciaram muito mais do que qualquer livro. Podemos ler toneladas de livros sobre nadar, mas só aprendemos o que é realmente nadar quando estamos dentro de água. Hoje em dia, a minha maior influência artística são as pessoas sinceras, homens e mulhers (não necessariamente artistas ou escritores), crianças e até cães, gatos, pássaros… Quando era mais novo era influenciado por Giotto, Picasso, Modigliani.

AA – Ser um russo a viver em Praga influencia o teu trabalho?
AS – Ser um artista russo será mais importante na Rússia do que em qualquer outro sítio. Porque, em qualquer outro sítio, sou apenas estrangeiro. E Praga não é excepção. Excepção… talvez seja essa a palavra-chave. Quando vivemos na terra pátria, nós (especialmente artistas, escritores…) tentamos alcançar essa sensação de ser excepcional, diferente. Quando vivemos fora temos essa sensação mesmo sem fazer qualquer esforço.

AA – Alguma vez estiveste em Portugal? O que conheces do nosso país? Algum escritor? Pintor?
AS – Ainda não estive em Portugal, mas sei que os russos adoram o teu país. Também sei que vocês têm uma coisa especial a que chamam ‘saudade’… E esse é também o sentimento preferido dos russos. Sei ainda que há algumas paredes em Portugal que têm quadros meus pendurados. E que há uma galeria em Paderne, no Algarve, que tem quadros da minha mulher (http://www.corterealarte.com). E conheço um artista, Julião Sarmento. Vi uma exposição dele em Munique, há muitos anos, e fiquei muito impressionado. Quanto a escritores portugueses só conheço um, José de Sousa Saramago. Li “The Stone Raft – A Jangada de Pedra”. É realmente um grande escritor.

AA – Que direcção achas que leva a tua arte por estes dias?
AS – A direcção da minha arte, neste momento, está em mudança e ainda não sei definir qual seja. Vamos esperar e ver.”

Agora sento-me, olho para os quadros de Alexander Sokht e vejo-os também pelos seus olhos. “Porque podemos ler imenso nos olhos da pessoa que amamos, no voo dos pássaros, nas vozes dos amigos…” E na sinceridade de um artista.


http://www.alexandersokht.com/

http://xpgallery.com/

6 comentários:

  1. Ana,
    que momento maravilhoso. Senti-me sentado a uma mesa escutando lânguidamente a vossa conversa.
    Que delícia de personagem!
    Obrigado.

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  2. Obrigada eu pela abertura de espírito que leva a essa sensação. Foi para mim um privilégio entrevistar o pintor e é outro privilégio poder partilhá-lo convosco.
    :-D
    aa

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  3. Fiquei completamente apaixonado pelas palavras que o artista usa e pela forma como as pinta.
    As tuas perguntas conduzem um diálogo extraordinariamente literário, digno dos melhores.
    Estou verdadeiramente encantado e também te agradeço este momento mágico.

    Beijo

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  4. Deu prazer a fazer e continua a dar, perante as vossas palavras. Muito, muito obrigada!
    aa

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  5. Ena! Abençoada lata! Gostei imenso... e é interessante que ele fale em José de Sousa Saramago... Hmmm... Parabéns e obrigada!

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  6. Muito obrigada, M. João! :-)
    aa

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